Os atores de ''Tremembé'' caracterizados, para uma imagem promocional da série (Foto: Divulgação/Prime Video)
Baseada em fatos revelados nos livros ''Diário de Tremembé'' (Acir Filló, 2019) e ''Tremembé: O Presídio dos Famosos'' (Ulisses Campbell, 2025), a recente série ''Tremembé'' conta os bastidores da vida carcerária que criminosos famosos como Suzane Von Richtofen, Alexandre Nardoni, Anna Carolina Jatobá, Elize Matsunaga, Daniel Cravinhos e Cristian Cravinhos tiveram convivendo na mesma prisão. Essa obra estreou na Prime Video há poucas semanas, mas já se tornou a produção brasileira mais assistida de tal serviço de streaming — o que não seria nada preocupante se, entre os milhões de espectadores da série, houvessem somente apreciadores do gênero ''True Crime'' que sabem bem reconhecer o que é certo e o que é errado... porém, estamos falando da sociedade brasileira, a mesma sociedade que, em 2007, assistiu ''Tropa de Elite'' e achou que era um filme exaltando as ações da Polícia Militar do Rio (sendo que o diretor José Padilha já afirmou inúmeras vezes que a intenção do longa era CRITICAR certos comportamentos existentes no sistema policial brasileiro... a exemplo da prática de tortura, corrupção e insistência na fracassada guerra às drogas que vitima diversos policiais e civis inocentes por ano).
É sempre muito perigoso utilizar a ótica do antagonista em um filme/série que é um estudo crítico de personagem. Por mais que obras como ''Tremembé'', ''Tropa de Elite'', ''Coringa'', “You” e a antologia ''Monstros'' não existam com o propósito de exaltar as ações de seus personagens principais, muitas pessoas acabam assistindo essas obras e tratando tais personagens como ''mocinhos incompreendidos''. O que era para ser uma crítica acaba, involuntariamente, reforçando pensamentos muito errados. Isso é culpa dos roteiristas? Em alguns casos, sim. Mas também tem a ver com o quão doentia e burra é grande parte da população mundial.
Os diretores de ''Tropa de Elite'' (2007) e ''Coringa'' (2019) acabaram lançando sequências dos seus respectivos filmes, pois sentiram necessidade de ''desenhar'' para um certo público que os protagonistas dessas obras não eram heróis (e, ainda assim, há quem não tenha entendido a mensagem até hoje). Um caso parecido aconteceu na série ''The Boys'' (2019-Presente): de uns tempos pra cá, os episódios desse programa passaram a ter críticas bem menos cifradas, pois, de maneira inacreditável, muitos espectadores assistiram às primeiras temporadas achando que o vilão Capitão Pátria é apresentado como um ''exemplo a ser seguido'' (o que é extremamente bizarro, visto que, desde o primeiro episódio, esse personagem comete uma atrocidade após a outra).
Capitão Nascimento (''Tropa de Elite''), Coringa (personagem da DC Comics), Capitão Pátria (''The Boys''), Jeffrey Dehmer (criminoso real dramatizado na série ''Monstros''), Irmãos Menendez (criminosos reais dramatizados na série ''Monstros'') e Joe Goldberg (''You'') são exemplos de antagonistas que, de maneira preocupante, geraram um sentimento forte de identificação em certas pessoas.
Quando um filme/série envolve casos reais, o cuidado que os roteiristas precisam seguir deve ser elevado à enésima potência. Afinal, abordagens inadequadas podem alçar assassinos a uma condição de popstar — o que é sempre um enorme desserviço ético à sociedade, especialmente às pessoas que foram afetadas pelas ações de tais criminosos.
Porém, esse desserviço vem acontecendo bastante, devido a ''Tremembé'': desde que a série estreou trazendo a carismática Marina Ruy Barbosa no papel de Suzane Von Richtofen, a loja online “Su Entre Linhas” (que é administrada por Suzane) passou de 20 mil para mais de 140 mil seguidores no Instagram. O crescimento da página foi tão grande que a criminosa fez questão de publicar o seguinte recado em seus stories: "Gratidão imensa a todos que estão mandando mensagem no WhatsApp! O carinho e a procura têm sido tão grandes que eu ainda não consegui responder todo mundo, mas podem ter certeza de que todas as mensagens serão respondidas" — Fofa! Nem parece que matou os próprios pais...
Aliás, em ''Tremembé'', os irmãos Cristian e Daniel Cravinhos (que ajudaram Suzane a assassinar os pais) foram retratados como os ''conquistadores do presídio'' — imagem que foi reforçada pelo fato d'eles terem sido interpretados pelos galãs Kelner Macêdo e Felipe Simas (que, aliás, são bem mais bonitos que os dois biografados em questão). Ao longo da série, muito se falou dos casos sexuais que Cristian e Daniel tiveram na cadeia, mas pouco espaço foi destinado para abordar a gravidade do crime que colocou eles lá — por mais que os casos sexuais citados realmente tenham acontecido e estejam presentes em ''Tremembé'' com o propósito de mostrar patologias como hibristofilia (atração sexual doentia que algumas pessoas sentem por criminosos), a maneira com a qual os roteiristas desenvolveram as tramas de Cristian e Daniel parece ter vindo de um episódio de ''Malhação''. Consequentemente, isso acabou aumentando bastante o número de seguidores dos dois irmãos, no Instagram.
Além disso, no X (antigo Twitter), milhares de pessoas estão relativizando o crime que levou Elize Matsunaga em cana (em 2012, ela matou e esquartejou o ex-marido Marcos Kitano). Pouco tempo após ''Tremembé'' estrear, um perfil de apoio chamado ''Acervo Elize Matsunaga'' foi criado nessa mesma rede social e já conseguiu mais de 2 mil seguidores, de lá para cá.
O que alivia um pouco é o fato de que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá não foram alçados a essa condição de popstars (pelo menos, não por enquanto). Mesmo assim, a mãe da falecida Isabela Nardoni já demonstrou ter receio de que a abordagem pop do roteiro de ''Tremembé'' possa acabar gerando isso: ''o que me preocupa nessa questão é trazer criminosos para os holofotes, tratando como se eles fossem celebridades, e não com a seriedade de cada caso. Nós, que ficamos, somos vítimas secundárias dos crimes. Isso faz parte da nossa vida e a gente tem que ser respeitado. Eu espero que as pessoas tenham responsabilidade ao assistir essa série, para que esses criminosos não se tornem pessoas públicas com fãs ao redor idolatrando, como eu já vi acontecendo'', disse Ana Carolina Oliveira, em um vídeo publicado no Instagram, na semana passada.
''Tremembé'' conta sim com algumas cenas de flashback que mostram rapidamente como foram os crimes brutais cometidos por Suzane Von Richtofen, Irmãos Cravinhos, Elize Matsunaga, Alexandre Nardoni, Anna Carolina Jatobá, Roger Abdelmassih e Sandrão. Porém, os roteiristas da série superestimaram a inteligência da população brasileira média, quando acreditaram que essas cenas seriam o suficiente para que todos entendessem que tais criminosos não devem ser exaltados. É claro que, para bom entendedor, meia palavra basta, mas a maioria das pessoas possui uma dificuldade tão grande de interpretar mensagens que, infelizmente, para que não aconteçam mal-entendidos, o roteiro dessas obras precisaria dispensar críticas veladas inteligentes e tratar os espectadores como crianças de 5 anos de idade, lembrando-os constantemente (e de maneira ultra-caricata) que o personagem principal da trama é um vilão.
Porém, é claro que nem isso resolveria totalmente o problema. Mesmo se ''Tremembé'' expressasse repúdio às ações de Richtofen e cia. da maneira mais transparente possível, ainda haveriam muitos espectadores exaltando os criminosos que protagonizam a obra. E aí é que entra o outro fator que eu mencionei há alguns parágrafos: o status de ídolo concedido a cada um dos ex-presidiários de ''Tremembé'' é consequência, não apenas do roteiro irresponsável dessa série, mas também do quão doentia é grande parte da sociedade. Muitas das pessoas que estão exaltando esses assassinos estão fazendo isso, não por estarem mal-informados ou terem interpretado mal um roteiro, mas sim por terem se identificado com as ações e o caráter deles. A triste verdade pode ser ilustrada através do seguinte trecho do filme ''Ele Está de Volta''(2015):
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